A minha relação com a província mais a sul do país é antiga, e assemelha-se muito a um romance de cordel, com amores, zangas, amuos, e toda a demais panóplia de situações comuns às grandes paixões; metade da minha família é algarvia, não "das praias" mas "da serra", como se usa na região, e isso fez-me começar a visitar a zona quase desde o berço, numa altura em que as torres por todo o lado ainda eram um projecto, infelizmente já não muito distante. Tudo era simples, como se é simples quando se é criança ou pré-adolescente, e vivia sistematicamente as minhas férias estivais à beira mar algarvia, sem mais preocupações do que guardar o tempo das digestões antes de mais um banho. Depois, veio a fase da adolescência, das férias sozinho, ou pelo menos já sem os pais. O Algarve manteve-se o destino regular, mais por hábito do que por qualquer outro motivo, mas o gosto pela terra começou a esbater-se na proporção inversa da quantidade de pessoas que demandavam aquelas terras, lusos ou etrangeiros. Foi o tempo da construção desenfreada, das lojecas de souvenirs por todo o lado, dos restaurantes com péssima qualidade de comida e serviços e altos preços, das discotecas onde se tinha que ir para se ser alguém, e depois gente, gente demais por todo o lado... Enfim, demasiados condicionamentos para a minha veia alternativa, e assim acabei por colocar uma grande cruz no mapa sobre o Algarve. Fim do primeiro acto, cai o pano.
Mal sabia então que, passados alguns anos, iria aceitar um emprego em que teria que me deslocar praticamente todas as semanas ao Algarve, com estadia de alguns dias. Pensei desde logo que dificilmente me manteria muito tempo em funções em tal cenário mas, como de costume, os factos surpreederam-me: as idas ao Algarve fora da época estival fizeram-me olhar para a terra com outros olhos, e até as ruas carregadas de lojas de souvenirs e marroquinaria, que anteriormente me pareciam descaracterizar as terras, passaram a concorrer, aos meus olhos, para o novo aspecto típico do Algarve, com o seu quê de kitsch. Voltei a apreciar a terra, depois de muitos anos, mudando apenas a perspectiva estética com que olhava para ela. E agora, é a nostalgia que me guia nas viagens ao Algarve.
Epílogo: esta semana voltei ao Algarve, em lazer. Fui para um desses hotéis de apartamentos, de sistema "tudo incluído", que tanto facilitam a vida das pessoas, principalmente a de quem tem filhos. Vim de lá completamente reconciliado com o Algarve, mesmo com as suas partes mais "plásticas", mas com uma nova embirração de estimação - ou melhor, não é nova mas reacendeu-se. Os turistas estrangeiros que nos visitam, sempre com um ar de sobranceria como se estivessem a visitar uma reserva indígena, mas que não passam, em mais de 90% dos casos, de perfeitos selvagens, com níveis de educação comparáveis aos dos primatas do Zoo. Usando o tal sistema "tudo incluído" pedem coisas que não consumirão e que deixam intocadas em cima das mesas, atropelam-se, e a nós, para atafulhar alarvemente os pratos de comida, deixam as suas pestinhas de 4 e 5 anos andarem livremente sem vigilância, a fazerem todo o tipo de asneiras e a colocarem-se, a elas próprias, em situações bem arriscadas. Enfim, a lista seria longa, e acredito que alguns dos que me lêem já conhecem o estilo; os ruidosos espanhóis, principalmente, mas também bastantes ingleses com formação de aborígene. E ainda sentimos nós alguma preocupação relativamente àquilo que de nós é dito lá fora. Tem tudo a ver com o nível de civismo de quem escreve ou fala. Para mim, ingleses javardos, como os que vi, virem dizer que Portugal é isto ou aquilo, equivale a ouvir Mugabe dizer que a Birmânia é uma ditadura. Credibilidade, ou a sua ausência, só isso.
Governar
Há 11 horas
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