2004/06/25

Contrição ou "See you soon!"

Ontem, por motivos profissionais, jantei em Albufeira, a poucos metros da Rua da Oura.

Já aqui confessei bastas vezes a minha embirração de estimação com o futebol e, principalmente, com a hipervalorização que se faz de um simples desporto; mas na última noite era impossível não sentir algum entusiasmo, e assim, pela primeira vez desde que este campeonato começou, assisti a um jogo quase na totalidade. O ambiente era simpático, com um restaurante cheio de portugueses, e mais uns holandeses que, no entanto, também apoiavam a selecção portuguesa. Mas já um rápido vislumbre para a rua deixava antever o pior, fosse qual fosse o resultado: milhares de adeptos ingleses pululavam por todo o lado, e bebiam litros e litros de cervejas em bares engalanados de branco e vermelho.

O jogo acabou, o resultado foi o que se conhece, o jantar também terminou, e viémos para a rua. Surpresa: eu, que nem sou pessoa de grandes euforias, nem tampouco ostentava qualquer sinal que me identificasse como luso, comecei a ser espontaneamente felicitado por ingleses pela vitória da selecção nacional. Ouvi vezes sem conta as expressões "nice fight", ou "fair enough".

Insisti então com o meu amigo P., que me acompanhou no jantar, para descermos até à Oura, a fim de verificarmos in loco se aquela educação britânica era um fenómeno da zona em que nos encontrávamos, ou se se tratava de algo generalizado. O P. estava algo receoso, com a memória de acontecimentos recentes ainda fresca, mas eu insisti bastante e lá fomos. Tudo na mesma: adeptos com fair-play, trocas de camisolas, felicitações mútuas.

Fiquei surpreendido, confesso, e aqui faço publicamente a minha assunção de erro: sempre pensei que os adeptos mais ferrenhos fossem uma raça de gente pouco digna desse nome, indivíduos que apenas se deslocam a um cenário de jogo para arranjar conflitos e, se possível, tirar desforço físico da parte contrária. O meu quase nulo conhecimento do meio induzia-me essa ideia. Estava errado, admito; esses, os violentos, são uma minoria que, contudo, gozam de um injusto protagonismo, dada a assiduidade com que se envolvem em problemas - e há-os em todo o lado, não me lixem: procurem lá também nas nossas claques dos dragões amarelos, dos diabos cor de rosa, ou em qualquer outra.

Mas os verdadeiros amantes desse desporto, como de qualquer outro, sabem portar-se com dignidade, ganhem ou percam, e esses merecem admiração incondicional.

2004/06/23

Parábola

Quando somos adolescentes todos os adultos nos parecem extremamente fastidiosos e desfasados da realidade; isto aplica-se principalmente aos avós, que "são uns chatos" que só servem para nos pespegar uns beijos repenicados nas bochechas, deixando, em contrapartida, umas notinhas no nosso dia de aniversário e no Natal. Quão estúpidos somos então!

Há dias, numa fabulosa tira de Calvin & Hobbes, publicada no Público, o pai de Calvin sofria de insónias - quando instado pela esposa a confessar o que o impedia de dormir, disse mais ou menos isto (cito de memória): "quando era pequeno pensava que os adultos sabiam sempre a forma correcta de resolver as situações; pensava que, quando chegássemos à idade adulta, todo esse conhecimento nos surgiria automaticamente - se soubesse que não era assim, não teria tido tanta pressa em ser adulto!" Lindo, não é?

Só quando nos tornamos adultos, e pais, percebemos as dificuldades que todos os nossos progenitores sentiram para nos educar; só então conseguimos avaliar a frustração de não nos conseguirem transmitir os seus ensinamentos, as dúvidas que sentiam naquilo que nos queriam dar e a ansiedade de perceberem que nem sempre estávamos disponíveis - e então sentimos um enorme remorso por não os termos recompensado devidamente desse esforço homérico, e por já ter passado tudo tão depressa.

Quando eu tinha vinte e poucos anos, conheci a primeira morte de um avô: atormentado pela doença, o meu avô Brito deixou-nos, depois de alguns meses de sofrimento. Era um homem grande, em todos os sentidos; foi um dos primeiros carteiros do Barreiro, depois funcionário fabril e, às suas custas, tornou-se num respeitado empresário de razoável sucesso. Nunca o chamei por "avô" - entre nós, chamávamo-nos mutuamente de "amigo", ate à data da sua morte. Eu, que nunca apreciei grandemente futebol, nunca esquecerei os muitos jogos da CUF e do Barreirense - ambas, então, equipas da primeira divisão - a que assisti na sua companhia. Quando eu tinha dezasseis anos, pedi-lhe insistentemente que me oferecesse uma motorizada, como tinham todos os meus amigos. No dia do meu décimo sexto aniversário, ele conduziu-me até á garagem e lá estava, reluzente, a motorizada dos meus sonhos. Mas não durou muito a alegria: passados uns meses enfeixei-me contra um carro, e fiz uma grave fractura exposta do fémur. Já lá vão mais de vinte anos, mas mesmo que viva até aos cem, nunca esquecerei aquela visita do meu "amigo" à clínica: pouco ou nada falou, nem sequer para me criticar (antes o tivesse feito), mas aquele olhar de mágoa e tristeza, e a culpa que ele visivelmente sentia por ter sido o causador indirecto da desgraça, magoaram-me mais que mil punhais.

Passados alguns anos, cerca de nove, morreu a minha avó Luísa, sua esposa. Era uma pessoa diferente: naquela época era comum haver algum apagamento da esposa, em função do marido, algo que nós agora chamaremos machismo, mas que na altura era visto como algo perfeitamente natural. Na altura não eram comuns os infantários, pelo que, num cenário de ambos os pais trabalhadores, eram normalmente os avós quem se encarregava da guarda das crianças. Lembro-me, por isso, das muitas tardes de brincadeira que passei naquele rés-do-chão do Alto do Seixalinho, no Barreiro, dos cabelos brancos que lhe fiz com birras e pedidos improváveis, mas, principalmente, da sua capacidade de resignação e tolerância. Nunca a minha avó Luísa perdeu realmente a paciência comigo, e o amor que me tinha fazia com que estivesse sempre ansiosa pela minha chegada. Dela lembro-me das manhãs na Praia da Manta Rota, em que propositadamente me punha a nadar até fora de pé, apenas para, sadicamente, ver a sua aflição e impotência; por vezes, chegava até a chamar o banheiro de serviço - mas, no regresso do banho, lá estava sempre religiosamente guardada a minha bola de berlim, que ela entretanto havia comprado.

O meu avô Álvaro, avô paterno, morreu um ano depois; deixou-me em testamento um exemplo de coragem e um importante ensinamento de amor. Apaixonado nos anos 30 por uma mulher de outra condição social, numa relação proibida, não hesitou em "raptá-la", fugindo de bicicleta (!) de Messines até Paderne, sete quilómetros pela serra algarvia, para então consumarem o casamento desejado. Poeta repentista, com uma memória prodigiosa, deixou-me gravada a força de vontade e a tenacidade que, mesmo numa pessoa simples como ele era, podem levar a romper barreiras e a aguentar duras provações da vida.

A minha avó Piedade morreu ontem. Lutadora, como o meu avô Álvaro, foi "cúmplice" na supra citada fuga, e também ela me ensinou o poder do amor. Aliás, por amor a mim, neto varão, era capaz de percorrer vários quilómetros desde a sua casa até à da minha avó Luísa, a pé, e o regresso comigo ao colo, apenas para poder ter a minha companhia por alguns momentos. A vida não lhe foi fácil, mas nunca lhe faltou uma palavra de compreensão e carinho, mesmo para com grandes injustiças que contra si foram cometidas. Senhora de uma agilidade invulgar até quase ao fim da vida, era também de uma doçura e simpatia que encantou todos quantos com ela privaram.

Nunca mais lhes poderei pagar a todos o bem que me fizeram, e por isso sinto sinceros remorsos. Todos me fazem já muita falta, mas todos me deixaram muito mais rico, como pessoa. Bem hajam lá no Céu onde estão, e no meu coração, de onde nunca sairão.

2004/06/20

Radar

Frase gira ouvida há uns minutos numa estação de rádio:

"Há duas maneiras de se ser rico: ter mais, ou desejar menos!"