O prometido é devido, e aqui estou a comentar o debate de ontem no "Prós e Contras" sobre a pertinência de se questionar o tipo de regime português. Isto quase cem anos volvidos sobre o golpe de estado, assente num crime hediondo, que instalou a república até aos dias de hoje, vetando constitucionalmente ao povo a possibilidade de avaliar essa escolha. Nada de muito surpreendente, a não ser, talvez apenas para mim que não andava suficientemente atento, a pujança e tendência de crescimento do movimento monárquico, mas já lá irei nas notas breves que a seguir deixo:
1. Como seria previsível, os argumentos republicanos careciam tristemente de fundamento, e foi confrangedor observar algumas figuras de algum relevo nacional a tentarem defender a falta de democracia da Constituição no seu
artigo 288, que blinda a república como único tipo de regime e impede o escrutínio dessa decisão pelo povo. A ironia de Medeiros Ferreira, usada recorrentemente como manobra de diversão do cerne da questão, apenas pode ter surpreendido quem não se lembra de tempos mais "revolucionários" da personagem. Mas desta vez apenas lhe conseguiu retirar credibilidade, pelo que não me deterei sobre este interlocutor, por não lhe reconhecer suficiente conteúdo (atributo comum a mais contendores, de resto), mas, principalmente, pela postura pouco respeitadora do adversário ideológico.
2. Já António Reis optou, avisadamente, por uma postura mais cautelosa, mas não conseguiu evitar a "casca de banana" que é o abuso que os republicanos fazem da primeira pessoa do singular, apropriando-se indevidamente do direito a uma decisão que não é sua, mas de todo um povo. Quando António Reis diz "eu acho que não faz sentido outro sistema de regime em Portugal que não a república", está a emitir a sua opinião, que apenas é respeitável enquanto tal. Mas não pode, como gostaria, torná-la numa espécie de orientação espiritual, menorizando vários milhões de portugueses com direito à mesma. António Reis é um, como eu, como o leitor, e como mais alguns milhões de portugueses. Em democracia contamos todos.
3. O Bloco de Esquerda, ou os seus simpatizantes e/ou militantes continuam a ter a "parte de leão" no divertimento público, principalmente nos números de malabarismo para moldarem os factos à sua opinião (e não o natural inverso), soltando de vez em quando estrondosos flique-flaques para chamarem de demagogos os que defendem opiniões sustentadas. Um espectáculo circense convenientemente disfarçado com "ruído" qb, para afastar as visões do essencial e focá-las no muito mais mediático acessório.
Daniel Oliveira não desmereceu, e apresentou-se impante de melodramatismos, na defesa de uma causa que, rápida mas desonestamente, transferiu para mais uma guerra esquerda direita. A manobra passa despercebida à maioria, mas não é de todo inocente; ao transfomar uma questão institucional numa questão política, o Bloco conta arregimentar mais forças para a sua causa e, principalmente, tenta servir-se ilegitimamente de uma causa supra partidária para as suas guerrinhas particulares. Isso ficou bem patente quando, com ar teatral, defendeu a liberdade de qualquer pessoa, em república, poder chegar ao topo da hierarquia do Estado, com recurso à caricata rábula
cindereliana do "filho do gasolineiro". A razoabilidade do argumento convenceu tanto quem o ouvia como o próprio, creio eu. Talvez num mundo ideal isso fosse verdade, mas, muito a montante, era mais importante que essa tão querida liberdade fosse extensível a outros aspectos da vida pública, como por exemplo a liberdade para decidirmos em que tipo de regime queremos viver. Patética e sem merecer comentários fica a atabalhoada explicação para o veto ao voto de pesar por El Rei D. Carlos, proposto por deputados no dia do centenário do seu assassinato. Quanto a isto, e voltando à obsessão da guerra entre esquerda e direita, D.O. não conseguiu justificar mais do que com o argumento de que, se se passa na Assembleia da República, é porque tem uma mensagem política, ainda que eles não saibam qual é; então, se foi proposto por um deputado de um partido dito de direita, vamos votar contra por princípio, que não por convicção. Um pouco como o marido supostamente enganado, que bate na mulher enquanto diz "eu posso não saber porque lhe bato, mas ela sabe porque está a levar". Demasiado simplório para ser levado a sério.
4. Por fim, e ainda naqueles que gostariam da manipular a questão para a transformar numa mera querela política, tenho a dizer que
Rui Tavares me desiludiu bastante. Leio amiúde as suas publicações no "Público" (e, penso agora, não tem saído muita coisa ultimamente...), ainda que não concorde naturalmente com elas, mas por lhe reconhecer alguma capacidade de argumentação para além do facciosismo que o atormenta. Mas não esperava, de todo, que fosse cometer a desonestidade de dizer que o tipo de regime já foi suficientemente sufragado, por existir um partido político que incorpora no seu programa esse tipo de alteração à Constituição Portuguesa. Como é evidente, há muitos monárquicos que não se reveêm no programa do PPM, e até aceito que existam muitos republicanos que o apoiam; talvez esse facto não seja tão notório agora, mas decerto verificou-se claramente quando Gonçalo Ribeiro Telles presidiu ao mesmo, com as suas políticas de ordenamento do território e de defesa ambiental e ecológica. Mas ao votar numas eleições políticas, não é suposto estarmos a escolher um tipo de regime, como todos sabemos, e Rui Tavares melhor que ninguém, mais que não seja pela sua formação académica e percurso pessoal e profissional. Daí não compreender a defesa consciente da falácia, com a quebra de crédito intelectual que tal, inevitavelmente, acarreta.
Como nota final, fiquei evidentemente feliz por ver um movimento coeso, objectivo e sereno e, principalmente, por perceber que existe uma crescente consciencialização da população para algumas injustiças gritantes, e que as mesmas estão a ocupar um espaço cada vez maior no debate público. A Causa está viva e recomenda-se, e o referendo será o próximo objectivo. Quem não deve, não teme!
É evidente que um referendo efectuado entre uma população desinteressada de quase 90% do seu passado, e quase exclusivamente nascida em meio republicano, dificilmente atingirá o sucesso desejável; mas é, desde já, mais uma forma de acordar consciências. E, se a esquerda não se importar de utilizar o seu peculiar sistema referendário, de fazer tantos referendos quantos os necessários até que o resultado seja o desejado, podemos estar no início de algo de muito bom para a identidade do nosso povo e de Portugal!