E de novo o país real se agita - nos intervalos de um
freak show rural - em redor de um não-acontecimento, repentina e habilmente transformado em facto político: o grandiloquente Marcelo Rebelo de Sousa ("professor Marcelo", para os íntimos) deixa voluntariamente o seu domingueiro posto opinativo na sequência, ao que parece, de algumas críticas que a si foram dirigidas pelo ministro Rui Gomes da Silva. Mas vamos por partes:
R.G.S. mais não fez do que expressar publicamente um sentimento que há muito atravessa a cabeça de qualquer português com um mínimo de lucidez: M.R.S. usa e abusa do seu espaço televisivo, supostamente de comentário político, para ajustar contas com todos aqueles que, de uma forma ou doutra, o ultrapassaram na sua irregular mas ambiciosa carreira política. É um mero exercício de catarse de vários anos de ressabiamento acumulado, e de sede de protagonismo desmedida. R.G.S. apenas disse: "o rei vai nu!"
Não obstante o que acima ficou dito, não é menos verdade que a TVI, a estação onde, a par com outras curiosidades e aberrações, M.R.S. vai destilando semanalmente o seu fel, é uma entidade privada e, como tal, livre de apresentar um espaço de massajamento pessoal do ego de M.R.S. disfarçado de "espaço de opinião". Mas isto, note-se, dentro de limites de razoabilidade definidos pelo bom senso, os quais deverão, à falta de melhor hipótese, ser balizados pela Alta Autoridade para a Comunicação Social. Vivemos numa democracia, lembram-se?
As críticas dirigidas por R.G.S. publicamente a M.R.S. são absolutamente legítimas e expectáveis numa sociedade livre e democrática, mas nunca,
per se, justificativas de uma tão brusca decisão. Se M.R.S. não tem qualquer pejo em, semanalmente, desancar em quem muito bem entende, deverá então estar desportivamente preparado para a resposta. O contrário pareceria mais próprio de uma criança mimada do que de um reputado analista político e mestre de direito.
Dando então de barato que não foram os comentários de R.G.S. que provocaram a intempestiva saída de M.R.S. (até pelo óbvio motivo de que, em termos de peso político das duas figuras, a balança pende ostensivamente para o lado de M.R.S.), há então que descobrir os motivos para a mesma - visto que, e até à altura em que escrevo, M.R.S. tem gerido estrategicamente o seu silêncio, dando intencionalmente azo às mais fantasiosas especulações.
Durante o dia, fui lendo e ouvido por toda a comunicação social, e até da boca de várias pessoas, a falácia de que o Governo, num condenável acto de censura, afastou M.R.S. do seu pedestal opinativo. É a velha história de se achar que uma mentira repetida muitas vezes se pode transformar em verdade. Mas o facto real - e aqui não há volta a dar - é que foi o próprio M.R.S. quem, de moto próprio e sem qualquer tipo de explicações públicas, resolveu abandonar voluntariamente aquele lugar. Esta é a verdade, por muito que a opinião publicada nos queira impingir o contrário. Aliás, se existisse de facto, o tal terrível movimento obscuro destinado a silenciar este educador de massas, por que raio iria R.G.S., num autêntico "tiro no pé", quebrar o secretismo da conjura com os seus intempestivos comentários públicos?
São conhecidos os mitos que rodeiam o comportamento político e pessoal de M.R.S., pelo que não será de todo ilegítimo concluir que, com uma grande dose de probabilidade, a sua decisão foi previamente pensada e planeada, com rigorosos
timings de acção, para provocar um sentimento de auto-vitimização, e a compaixão dos muitos portugueses que, domingo após domingo, ansiavam e se deleitavam com as centenas de sugestões de
coffee table books sobre tapetes de Arraiolos, arquitectura manuelina ou leitões da Bairrada. Os comentários de R.G.S. foram apenas o pífio pretexto de que M.R.S. necessitava para sair com uma virginal aura de "voz incómoda afastada".
Também bastante se tem aventado a hipótese de o próprio presidente do conselho de administração da Media Capital, Miguel Paes do Amaral, ter aconselhado M.R.S. a "amaciar" o seu discurso relativamente ao Governo, tendo em vista a prosecução e concretização de negócios por parte daquele grupo. Mas também esta teoria cai rapidamente pela base, se pensarmos nas desvantagens que a TVI teria ao perder a colaboração semanal do douto professor. Ou seja, M.R.S. teria poder suficiente - e ele sabe-o bem - para manter a sua posição e atitude truculenta, e à TVI e a M.P.A. apenas restaria aceitá-la sob pena de perderem
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Desmontada, pois, esta abstrusa "teoria da conspiração" de um mafioso afastamento de M.R.S. do seu púlpito, o que nos resta? O óbvio: a ambição desmesurada e a fenomenal visão estratégica de M.R.S. juntaram-se para criar um facto político que visa, simultaneamente, abanar ainda mais a actuação - atabalhoada, valha a verdade - deste Governo, onde M.R.S. conta por ódios e ressabiamentos os ministros, e, por outro, criar o espaço necessário para "o professor" começar a preparar novas "corridas", intra e extra partidárias, num cenário de corajosa independência política e suposta frontalidade. Veja-se para já, quem correu em seu socorro: desde
José Pacheco Pereira - sempre em bicos de pés, sequioso por uma migalha de protagonismo, mesmo que a reboque de outrém, e também ele cheio de ódios de estimação em relação a este Governo e às forças que o integram - a Bernardino Soares, passando por Francisco Louçã ou Arons de Carvalho, parece, para já, estar reunida uma improvável mas tenaz falange de apoio. Como dizia há bocado Luís Campos Ferreira, esta será uma boa altura para M.R.S. começar a pensar em contabilizar apoios para as novas batalhas políticas que se aproximam.